Uso livre de drogas longe do consenso
A descriminalização do uso de drogas no Brasil, proposta aprovada nesta semana pela comissão de juristas que está elaborando o anteprojeto para reforma do Código Penal no Senado, divide opiniões. Entidades ligadas à defesa dos direitos humanos comemoram, enquanto grupos que lutam por mais rigor na legislação antidrogas lamentam.
A proposta para o novo Código, que será entregue aos senadores no fim de junho, é inspirada na legislação de Portugal, e considera como usuário a pessoa que estiver com uma quantidade de entorpecente equivalente ao consumo médio individual de cinco dias. No país europeu, a quantia é relacionada ao uso para 10 dias.
O defensor de maior peso da mudança na legislação é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Quando apresentou o filme Quebrando Tabu, em maio do ano passado, Fernando Henrique, que hoje preside a Comissão Global de Políticas sobre Drogas, ressaltou que é preciso tratar o usuário como alguém que precisa de assistência médica e não como um criminoso. O ex-presidente, porém, considera que essa discussão deveria partir da população e não do legislativo.
A especialista em segurança pública Marcelle Figueira, no entanto, acredita que os juristas levantaram o bate-papo. Para ela, o importante é discutir o tema de forma construtiva, sem moralismo. “O que faz uma droga lícita ou não é a legislação. O usuário tem que ser tratado como uma pessoa doente, assim como os alcoólatras e os que usam medicamentos controlados de forma ilegal.”
Outro ponto positivo, apontado pela especialista, é a definição objetiva do que é uso e tráfico. “O que determina hoje quem é consumidor e vendedor é a avaliação subjetiva do policial em cima do que a pessoa porta. A forma como lidamos hoje com as drogas é uma guerra perdida de segurança pública”, concluiu.
O deputado federal, Onofre Santo Agostino (PSD-SC), foi um dos que se pronunciaram sobre a decisão. Para ele, a descriminalização do uso é o mesmo que banalizar e não soluciona o problema. “A pessoa drogada vai comprar a droga aonde? Na farmácia? O governo vai dar a droga ou ele vai comprar do traficante? Em consequência, acredito que vai aumentar o número de traficantes, porque haverá mais consumo”, previu.
Porção
Os juristas colocaram nas mãos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a responsabilidade de regulamentar qual seria o montante permitido. Em nota, o órgão afirmou que “este é um tema novo no âmbito de uma agência reguladora de medicamentos e que nenhuma agência internacional com este perfil regula ou regulou esta questão”. A Anvisa informou que não foi chamada para os debates, mas destacou que a discussão é relevante do ponto de vista da saúde pública.
Apesar da liberação do consumo, os juristas acrescentaram no texto uma pena de seis meses a um ano para quem fizer uso ostensivo de drogas em lugares públicos onde há concentração de menores. A pena também será aplicada para o caso de alguém que utilizar a droga em casa perto de crianças ou adolescentes.
Medidas alternativas
Atualmente, o uso e a comercialização de entorpecentes é crime, conforme prevê a Lei de Drogas, em vigor desde 2006. No entanto, a legislação não prevê pena de prisão, fixando medidas alternativas, como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e comparecimento a programa ou curso educativo. Já a quem produz ou comercializa drogas, a lei atribui pena de 5 a 15 anos de reclusão e pagamento de multa de R$ 500 a R$ 1.500.
Povo fala// Você é contra ou a favor da mudança no Código Penal?
Marcel Menezes, estudante, 21 anos
“Sou contra porque, para mim, a pessoa que está consumindo algo ilegal está cometendo um crime. Ela é usuária de uma droga que não vai ser descriminalizada, então, tem que pagar como uma pessoa que comete outro tipo de crime. O usuário não pode ficar impune.”
Lenine Nankassa, sociólogo, 34 anos
“As pessoas criticam o uso de drogas, mas o álcool é tão fatal quanto elas. Não é porque a pessoa é usuária que ela vai sair por aí cometendo crimes. Uma coisa não está associada à outra. O governo devia focar seus esforços em combater os traficantes e não os usuários.”
Iraci de Jesus, doméstica, 47 anos
“A lei já é branda com o usuário e não deveria fechar os olhos de vez para esse crime. Como a substância continua ilegal, na minha opinião, a pessoa continua cometendo um delito, e está errada.”
Mariana Cintra, estudante de antropologia, 24 anos
“Sou a favor considerando que o direito à escolha de cada um deve ser respeitado. Se essa lei entrar em vigor, espero que ela valha para todos, que quem more na periferia também seja encarado como usuário e não como traficante, que é o que ocorre hoje.”
Raimundo Silva, segurança, 56 anos
“Acho que os juristas estão errados. A cada dia morre gente em decorrência do uso de drogas e isso vai continuar acontecendo porque a lei permite. Eles estão morrendo e matando e, em vez de reforçarem a lei, afrouxam. É como se eles não soubessem o que acontece nas ruas.”
Rosa Costa, aposentada, 69 anos
“Quem tem que ser punido e combatido é o traficante. A polícia fica perdendo tempo com esses usuários e não dá em nada. É melhor que descriminalize mesmo e que o poder público se foque no que realmente é importante.”
Ponto crítico
O uso de entorpecentes deve ser descriminalizado?
SIM
Beatriz Vargas, rofessora da UnB, specialista em direito penal
A descriminalização do usuário é bem-vinda. A decisão do Senado se aproxima do que está em vigor na legislação de Portugal e da Espanha. Lá, essa conduta é considerada como tráfico ou uso dependendo da quantidade, o que deve ser adotado no Brasil com diferenças entre os tipos de droga. Essa medida deve contribuir para a redução da violência, sobretudo, a policial. A proposta é um avanço e atualiza a legislação. O Brasil já tinha despenalizado o usuário, mas só agora existe a possibilidade de tratá-lo de forma indiferente do ponto de vista penal. Pela primeira vez, o estado sinaliza o entendimento de que essa questão é de saúde pública e não de polícia. E, diferente do que se diz, o sistema sanitário deve desafogar porque entre as sanções atuais está o tratamento compulsório. Atualmente, mesmo quem consegue administrar o uso de droga pode ter que se tratar e isso deixará de ser obrigatório. Nem todo usuário é dependente e essa distinção passará a ser feita.
NÃO
Marco Antônio de Almeida, Delegado-chefe da 5ª Delegacia de Polícia
A descriminalização da conduta do usuário não vale se o comércio continuar a ser crime. Os dois estão umbilicalmente ligados. Não tem traficante se não tem consumidor. É antagônico tratar de um e não falar no outro. Depois da alteração de 2006, que despenalizou o uso da droga, as cracolândias explodiram e o uso de drogas aumentou exponencialmente. O uso já é praticamente descriminalizado. A lei atual prevê medidas alternativas com pena máxima de uma advertência verbal. Para quem se prostitui ou rouba para comprar droga, uma advertência verbal não tem peso nenhum. A indiferença penal acaba incentivando o uso. É comum que as pessoas comparem com o uso do álcool, mas nunca vi ninguém roubar ou levar uma televisão em uma padaria para trocar por uma garrafa de cachaça. A realidade nos mostra que as drogas fomentam uma série de crimes que orbitam em torno do narcotráfico, como roubo, furto, homicídio e pequenos delitos. Se é para descriminalizar, vamos ser corajosos e legalizar o comércio. Assim o estado puxa a responsabilidade para ele.
Fonte: Jornal Correio Braziliense